raiva

Adriel Silva Pinto
2 min readMay 6, 2020

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quando caminhava rumo a cozinha buscando achar uma caneca de chá que havia esquecido há um quarto de horas, ouve uma batida na porta central. sempre descalço, dá um giro em torno de si, e se volta rumo ao som da batida. sabia que podia abrir, mesmo que fosse um delinquente, assim mesmo teria uma nobre postura com ele. mas delinquentes não batem a porta. porém ele sempre esperava o pior, mesmo com um calma que impressionava até ele, parece que dentro de si existia um guardião, ou apenas um inveterado otimista. quando abriu a porta deu de cara com o rosto possivelmente conhecido, lembrava vagamente em um dia de chuva daquele sujeito, sentado no último banco e na sua extremidade, lugar dos pecadores, ou dos tímidos de fé. mas no meio do sermão, parte mais complicada, não por causa do espírito santo, que ele não sentia, mas sim por lembrar das associações, para ele argumentar era uma ligação de lógica com memória. o sujeito olhava para ele, quase esperando que ele o decifrasse, então para não ficar aquele silêncio prioridade sobre o assobio do vento, perguntou: o que te traz aqui?. não houve resposta imediata, e isso já era indício de que aquele estava com um sentimento de domínio. era raiva. então desatou a falar, disse que morava em uma casa abandonada, e que com ele morava mais sete. um deles havia lhe roubado um papelote, com conteúdo inteligível. dizia que sabia quem era, mas os outros não lhe deram respaldo. disseram que estava drogado. ele não estava. formulava quando o sujeito falava uma sentença: a injustiça não tem fundo nem cercas, é cheia de camadas. quando terminou de falar, o homem que estava porta a dentro diz que era melhor deixar pra lá, que ele ia arrumar uma forma de comprar mais. mas isso não diminuiu a cólera, e ainda o fez proferir que iria matar, e que só isso poderia servi-lhe. enquanto o outro falava, se lembrou da própria raiva que carregava, de tudo, dos pais, dos amigos, do seu país, de deus, de tudo, de tudo mesmo. hoje já não sabia onde ela estava, se tinha guardado em algum lugar dentro de si, ou tinha reciclado em alguma vontade. estremeceu. e principalmente compadeceu. sabia que se tivesse tomado alguma iniciativa teria feito jorrar, mesmo que de forma horrorosa, sua raiva pra fora. mas não fez. quase disse para o raivoso, cumpra sua missão. mas como eu não havia feito nada a anos atrás, e sabia que o mais prudente era não fazer nada mesmo não sabendo o que fazer, chamei ele para dentro, disse que ia fazer café; talvez juntos pudêssemos descobrir aonde ele poderia guardar a raiva dele, e aonde estaria a minha.

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